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ENSAIO INDEPENDENTE  |  INDEPENDENT ESSAY

Tertuliana Lustosa e o corpo como protesto: reflexões sobre a hipocrisia da esquerda moralista

Tertuliana Lustosa and the body as protest: reflections on the hypocrisy of the moralistic left

RESUMO A performance da historiadora transgênero Tertuliana Lustosa, durante uma palestra na Universidade Federal do Maranhão, gerou um intenso debate sobre moralidade e expressão artística. Utilizando dança erótica em um ambiente acadêmico, Lustosa desafiou as convenções sociais e revelou uma contradição no campo progressista: setores da esquerda institucional, historicamente defensores da pluralidade, condenaram a manifestação, aproximando-se de práticas conservadoras. A partir de uma análise teórica baseada em autores como Paulo Freire, Judith Butler e Herbert Marcuse, o ensaio reflete sobre o corpo trans como ferramenta de resistência e a importância de uma abordagem interseccional nas lutas sociais. Ao subestimar questões identitárias, a esquerda moralista reproduz hierarquias de opressão que enfraquecem suas bases, comprometendo a construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva. A liberdade de expressão e a autonomia corporal são fundamentais para a justiça social e a transformação radical que a esquerda pretende alcançar.

PALAVRAS-CHAVE: Tertuliana Lustosa, Corpo Trans, Esquerda Moralista

 

ABSTRACT The performance of the transgender historian Tertuliana Lustosa during a lecture at the Federal University of Maranhão sparked an intense debate on morality and artistic expression. Using erotic dance in an academic setting, Lustosa challenged social conventions and revealed a contradiction within the progressive field: sectors of the institutional left, historically defenders of plurality, condemned the performance, aligning themselves with conservative practices. Based on a theoretical analysis rooted in authors such as Paulo Freire, Judith Butler, and Herbert Marcuse, this essay reflects on the trans body as a tool of resistance and the importance of an intersectional approach to social struggles. By underestimating identity issues, the moralist left reproduces hierarchies of oppression that weaken its foundations, compromising the construction of a truly inclusive society. Freedom of expression and bodily autonomy are fundamental to social justice and the radical transformation that the left aims to achieve.

KEYWORDS: Tertuliana Lustosa; Trans Body; Moralistic Left

INTRODUÇÃO

A recente performance de Tertuliana Lustosa, historiadora transgênero, em uma palestra na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), gerou um debate que transcende o ambiente acadêmico. Sua apresentação, envolvendo dança erótica, provocou reações intensas, particularmente entre setores da esquerda institucional, grupos que, em teoria, deveriam defender a liberdade de expressão e a pluralidade de corpos e ideias. No entanto, a condenação veemente por parte desses mesmos setores escancara uma contradição preocupante: a esquerda, em sua versão moralista, parece cada vez mais alinhada com o conservadorismo que diz combater.

O que está em jogo aqui não é apenas o direito de um corpo trans ocupar o espaço acadêmico, mas a capacidade de reconhecer que a subversão de normas sociais é uma forma de resistência política. A esquerda, historicamente alinhada com a luta pela justiça social, deveria ser o primeiro grupo a apoiar manifestações artísticas que questionam a ordem estabelecida. No entanto, ao condenar a performance de Lustosa, ela revela uma hipocrisia moralista que desafia seus próprios princípios de liberdade e pluralidade.

 

CORPOS DISSIDENTES E A SUBVERSÃO DE NORMAS

Tertuliana Lustosa, ao subverter as normas sociais e acadêmicas, nos convida a refletir sobre o papel do corpo trans na sociedade e seu potencial como ferramenta de contestação. Sua performance, que desafia as convenções de um espaço acadêmico rigidamente normativo, nos leva a uma questão central: por que a expressão artística de um corpo trans é considerada inadequada em um espaço dedicado ao pensamento crítico e à educação libertadora?

Paulo Freire, em sua obra Pedagogia do Oprimido, nos lembra que a educação é um processo de libertação. Segundo Freire, ninguém se liberta sozinho; a liberdade é construída em comunhão. Negar a Lustosa o direito de expressar-se livremente em um ambiente acadêmico é perpetuar as mesmas formas de opressão que silenciaram vozes dissidentes ao longo da história. A academia, espaço que deveria fomentar a crítica e a liberdade, acaba por reproduzir uma lógica conservadora ao limitar os corpos que podem ali se expressar.

A performance de Lustosa expõe a contradição da academia, que se diz libertadora, mas restringe corpos dissidentes, mostrando que a verdadeira liberdade requer inclusão de expressões plurais e marginalizadas.

 

PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO, INTERSECCIONALIDADE, O MORALISMO DA ESQUERDA E A RESISTÊNCIA POLÍTICA

Judith Butler, em seu livro Problemas de Gênero, oferece uma análise essencial para compreendermos a subversão e a resistência por meio da performance. Butler argumenta que o gênero é performativo, ou seja, não é uma identidade fixa ou natural, mas sim uma construção reiterada por meio de normas e comportamentos repetidos. Quando Lustosa rompe com essas normas, ao realizar uma dança erótica em um espaço acadêmico, ela desestabiliza as expectativas sobre como corpos trans devem se comportar. Esse rompimento é um ato de resistência que expõe como o gênero, e os corpos em geral, são regulados e controlados pela sociedade.

A performance de Lustosa, ao provocar desconforto, cumpre seu papel de nos forçar a refletir sobre as limitações do que entendemos como “espaço adequado” para discussões epistemológicas. A verdadeira luta por uma sociedade justa e igualitária não pode temer a radicalidade do corpo como ferramenta de contestação. Pelo contrário, são essas expressões radicais que desafiam as estruturas normativas e abrem caminho para novas formas de existência e conhecimento.

Infelizmente, muitos setores da esquerda institucional têm tratado as lutas identitárias como questões secundárias, priorizando temas econômicos em detrimento da interseccionalidade. Ao fazer isso, esses grupos ignoram a complexidade das opressões que atravessam raça, classe, gênero e sexualidade, enfraquecendo o movimento e abrindo espaço para que a direita conservadora explore essas divisões internas.

Esse caso não pode ser visto como isolado ou distante das outras lutas minoritárias. Quando a liberdade de expressão do corpo de uma pessoa é ameaçada por argumentos meramente morais, isso representa um sinal de alerta para todas as minorias. Se a régua moral da esquerda institucional subir só mais um pouquinho, outros grupos dissidentes e minorizados, que hoje podem se sentir protegidos, podem ser os próximos a sofrerem silenciamento e violência. A liberdade de um é a liberdade de todos.

A interseccionalidade, conceito vital cunhado por Kimberlé Crenshaw, nos lembra que opressões não podem ser vistas de forma isolada. Raça, classe, gênero e sexualidade estão interligados, e as desigualdades são intensificadas pela forma como essas identidades se cruzam. Quando a esquerda deslegitima as lutas identitárias, ela corre o risco de alienar uma parte significativa de sua base e de não sustentar uma agenda verdadeiramente inclusiva. Ao criar uma hierarquia de opressões, onde algumas causas são consideradas mais legítimas que outras, a esquerda moralista se aproxima perigosamente das práticas conservadoras.

Essa postura de rejeição às lutas identitárias reforça uma narrativa conservadora que se alimenta dessas divisões. O que deveria ser um campo de solidariedade se transforma em um terreno fértil para a fragmentação. Ao condenar a performance de Lustosa de forma tão veemente, a esquerda expõe sua própria fragilidade e nos faz questionar se ela realmente está comprometida com a inclusão e a justiça social.

 

A LIBERDADE SEXUAL COMO RESISTÊNCIA

A história das lutas sociais demonstra que a liberdade sexual está profundamente ligada à justiça social. Herbert Marcuse, em Eros e Civilização, argumenta que a repressão sexual é uma ferramenta de controle social, usada para manter as estruturas de poder. Lustosa, ao desafiar normas de sexualidade e gênero por meio de sua performance, inscreve-se na tradição de resistência que busca libertar os corpos das amarras impostas pela sociedade.

Hakim Bey, em sua obra T.A.Z.: The Temporary Autonomous Zone, introduz o conceito de zonas autônomas temporárias, onde as normas podem ser suspensas e novas formas de existência experimentadas. A performance de Lustosa pode ser vista como uma dessas zonas autônomas, onde as convenções são temporariamente subvertidas para abrir espaço para epistemologias alternativas e novas formas de saber. Essas zonas de subversão são fundamentais para a criação de novas realidades, onde corpos dissidentes podem existir sem a constante ameaça de controle e repressão.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A ESQUERDA E O DESAFIO DA INCLUSÃO RADICAL

Nesse ensaio, buscamos demonstrar como a performance de Tertuliana Lustosa tornou explícitas contradições profundas da esquerda frente à inclusão, justiça social e combate ao conservadorismo. A esquerda, se realmente pretende ser agente de transformação, deve encarar de frente suas contradições, aceitando que o verdadeiro progresso requer o rompimento com qualquer forma de moralismo conservador. Ao invés de silenciar corpos dissidentes, a esquerda deve abrir espaço para que todas as expressões, especialmente as que desestabilizam normas hegemônicas de gênero, sexualidade e raça, possam florescer.

Para que isso aconteça, é necessário um compromisso real com a interseccionalidade. Não basta que a esquerda reconheça as lutas identitárias; ela precisa integrá-las ativamente em sua agenda política e prática cotidiana, valorizando a pluralidade de experiências. O convite é para que a esquerda abra mão de sua posição moralista e adote uma postura verdadeiramente progressista, onde corpos marginalizados não sejam apenas tolerados, mas celebrados e incluídos nas tomadas de decisão.

A transformação radical que a esquerda deseja só será possível quando aceitar que a luta por justiça social envolve uma libertação plena de todos os corpos e vozes, desafiando as convenções e acolhendo a diversidade como base para um novo modelo de sociedade. A performance de Lustosa nos mostra que esse caminho, embora desconfortável para alguns, é sim uma estratégia legítima e eficaz para romper com os ciclos de opressão que ainda persistem.

 

REFERÊNCIAS

 

BEY, H. T.A.Z.: The temporary autonomous zone, ontological anarchy, poetic terrorism. New York: Autonomedia, 1991. Disponível em: https://ia601304.us.archive.org/9/items/al_Hakim_Bey_T.A.Z._The_Temporary_Autonomous_Zone_Ontological_Anarchy_Poetic_Terror/Hakim_Bey__T.A.Z.__The_Temporary_Autonomous_Zone__Ontological_Anarchy__Poetic_Terrorism_a4.pdf.  Acesso em: 24 out. 2024.

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SANTOS, C. R. B. F. Tertuliana Lustosa e o corpo como protesto: reflexões sobre a hipocrisia da esquerda moralista. In: ARCO (Org.). Arcos Dissidentes - Repositório. Jaboatão dos Guararapes: ARCO, 2024. Disponível em: <https://www.ongarco.org/arcos-dissidentes-reposit%C3%B3rio-tertuliana-lustosa-corpo-como-protesto-hipocrisia-esquerda-morali>. Acesso em: inserir data de acesso. Epub 25 out. 2024.

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