Você viu na coluna de Saúde aqui do Portal Cores que o vírus HIV continua infectando muita gente depois de muito tempo. De acordo com o texto, no Brasil de hoje, estima-se de 920 mil pessoas vivem com o vírus da imunodeficiência humana.
Foto: Canva
Para, o autor, o vírus continua infectando milhares de pessoas todos os anos, principalmente por causa da falta de informação e conscientização sobre o vírus e a doença. Além disso, outro fator que contribuiria para a persistência do HIV seria a dificuldade de acesso a métodos de prevenção eficazes.
Além disso, o autor segue explicando que um grande problema que contribui para a disseminação do vírus, é o preconceito e a manutenção de estigmas contra pessoas que convivem com o HIV, notadamente contra grupos já vulnerabilizados. O texto ao qual me refiro faz menção, ainda, à infecção desproporcional de pessoas de grupos marginalizados, tal qual a comunidade LGBTQIA+.
Ainda na matéria, o autor indica que a infecção está associada não à pessoas, mas a comportamentos de risco, como o sexo desprevenido. Isso significa que, o vírus não olha a orientação sexual da pessoa que está sendo infectada. Infelizmente, esse não era o entendimento das autoridades sanitárias brasileiras.
Veja, no Brasil do século XXI (iniciado em 2001), existia uma Portaria do Ministério da Saúde que limitava a doação de sangue por pessoas LGBTQIA+ (homens que fazem sexo com homem).
Isso mesmo, o art. 64, inciso IV, da Portaria 158/2016, do Ministério da Saúde, considerava inapto temporário por 12 meses para doação de sangue, homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes, impossibilitando, portanto, que pessoas LGBTQIA+ doassem sangue. Dito de outra forma, para doar sangue, homens gays e bissexuais, e seus parceirxs, teriam que fazer uma quarentena de 12 meses sem sexo.
A Portaria tomava como base também a Resolução de Diretoria Colegiada nº 43/2014, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que também considerava inapto para a doação por 12 meses, os candidatos homens que tivessem praticado relações sexuais com outros homens.
Apesar de as normas técnicas (preconceituosas), preverem que a inaptidão seria temporária, fato é que os doadores estariam permanentemente proibidos de doar sangue, posto que exigia desses que parassem de fazer sexo, por um período mínimo de dozes meses antes da doação
Não quero entrar na seara fisiológica, porque não é minha especialidade, nem minha área de estudo e conhecimento, porém, é fato incontroverso que fazer sexo é uma necessidade humana, ou seja, qualquer individuo naturalmente faz sexo. Existem exceções, é claro.
Estudo publicado na revista Veja, dá conta de que os jovens entre 18 e 29 anos têm, em média, 112 relações sexuais por ano, o corresponde a três encontros por semana; o grupo de 30 a 39 anos tem 86 encontros sexuais, e a população de 40 a 49 anos, teria em média 69 sessões anuais. Isso significa, obviamente, que as pessoas fazem sexo.
Seria estranho exigir que homens que fazem sexo com mulheres (leia-se, homens heterossexuais), deixassem de fazer sexo por um ano, a fim de que pudessem doar sangue. E por que não era estranho exigir isso de pessoas LGBTQIA+? A resposta é simples - PRECONCEITO! Homofobia institucional!
A norma que proibia esse grupo de doar sangue foi impugnada no Supremo Tribunal Federal através da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543/DF, em que se discutia a validade jurídica da proibição de doação de sangue po homens que fazem sexo com homens. O Partido Socialista Brasileiro - PSB, autor da ação, descreveu a Portaria do Ministério da Saúde e a RDC da Anvisa como "aparentemente progressista, mas notoriamente contraditória e impregnada de preconceitos". Para o requerente, a norma técnica presumia que homens que fazem sexo com homens seriam um grupo de risco, presunção esta falsa e inconstitucional.
Fato é que não existem grupos de risco, e sim, comportamentos de risco, tal qual o sexo sem preservativo, o compartilhamento de objetos perfurocortantes, etc. Cito, inclusive, que boa parte dos casos de HIV são de pessoas heterossexuais, principalmente daqueles homens "pais de família" que traem suas esposas, e as expõe ao vírus.
O Boletim Epidemiológico do HIV do Ministério da Saúde de 2022, da conta de que entre 2007 e 2022, a principal categoria de exposição no gênero masculino foi de homens que se relacionam com outros homens. Já no gênero feminino, a maior categoria de exposição foi de práticas heterossexuais (86,6%). No mesmo período, no grupo masculino com idade de 40 anos ou mais, a maior prática exposta foi a heterossexual, chegando a 64,7%.
Coincidência ou não, as mesmas pessoas que nos atacam de dia, procuram nossos corpos à noite, a fim de saciar suas "necessidades".
Voltando à Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543, seu mérito foi julgado em 2020. Graças ao bom senso dos julgadores, a ação foi julgada procedente, a fim de declarar inconstitucional a Portaria do Ministério da Saúde e a Resolução da Anvisa, afastando, portanto, a aplicação dos trechos que restringiam a doação de sangue de homens que fazem sexo com homens.
Na ação em cotejo, os Ministros entenderam que a responsabilidade com o outro nos obriga a desconstruir o Direito posto para "tornar a Justiça possível e incutir, na interpretação do Direito, o compromisso com um tratamento igual e digno a essas pessoas que desejam exercer a alteridade e doar sangue". Decidiram, ainda, que o estabelecimento de grupo - e não de condutas - de risco seria discriminação e viola a dignidade da pessoa humana e o direito à igualdade.
De acordo com a decisão, a restrição à doação de sangue por homossexuais, da forma como posta, afronta a autonomia privada desse grupo, pois impede que seus integrantes exerçam plenamente suas escolhas de vida, com quem se relacionar, com que frequência, ainda que de maneira sexualmente segura e saudável. Violaria, outrossim, a sua autonomia pública, pois as normas técnicas, vedavam a possibilidade de auxiliarem àqueles que necessitam, por qualquer razão, de transfusão de sangue.
Além de violar o direito de serem solidários, violava o direito à igualdade de homens gays e bissexuais, e seus parceiros, na medida em que lhes subtraia o direito de fruir de forma livre e segura a sua própria sexualidade para exercício do ato empático de doar sangue.
Trago à baila, ainda, trecho do voto do Ministro Edson Fachin, relator da Ação no STF, no sentido de que é impossível ignorar a violência física e simbólica a que está submetida a comunidade LGBT no Brasil (diga-se de passagem, é o que mais mata LGBTs no mundo). Ressalto, ademais, assim como fez o ministro Fachin, que muito sangue foi e tem sido derramado em nome de preconceito insubsistentes.
A ação, como falei, foi julgada procedente, de modo que afastou-se a proibição de doação de sangue por pessoas LGBTQIA+. Por força da decisão do STF se espera que outra Portaria seja publicada, lançando mão de novo critério restritivo para a doação de sangue, dessa vez, adotando condutas de risco, e não grupos, pessoas.
Ressalto, além disso, que a melhor forma de evitar a exposição e contaminação pelo vírus é a prevenção. Caso isso não seja possível e você ou alguém que conheça tenha se contaminado, é necessário cuidar da sua saúde, procurar ajuda médica e psicológica, e tratar as pessoas igualmente. Ninguém é melhor ou pior por causa da condição de saúde que tem.
Às pessoa que convivem com o vírus, no menor sinal de discriminação, por parte de amigos, familiares, patrões, colegas de trabalho, servidores públicos, etc. denuncie, faça valer seu direito à igualdade, à não discriminação. Ter respeitada a dignidade, a cidadania e a vida é um direito de todos.
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