Você viu em alguns textos aqui no Portal que no Brasil de 2023 - isso mesmo, 2023 - estão tramitando mais de 60 projetos de lei que pretendem restringir direitos de pessoas trans, conquistados a duras penas. Se você não viu, recomendo que acompanhe por aqui.
Pensando nisso, quis revisitar uma discussão muito importante: o uso de banheiros por pessoas trans no Brasil.
Foto: Colagem Canva
Há duas semanas, uma mulher trans foi "convidada" a se retirar do banheiro feminino de um centro comercial no Cabo de Santo Agostinho/PE. O vídeo do momento viralizou e a vítima foi ainda mais violentada por internautas. Pasmem, foi ameaçada de morte. Para entender o caso e as medidas que poderiam ser tomadas, resolvi pesquisar na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Corte de vanguarda em direitos LGBTQIA+, e qual foi minha surpresa, ao descobrir que o STF ainda não se decidiu sobre tal matéria.
Isso mesmo! A possibilidade de pessoas trans utilizarem os sanitários conforme sua identidade de gênero chegou à Suprema Corte, e será decidida no Recurso Extraordinário nº 845.779 - SC, sob o Tema de Repercussão Geral 778, porém, não há previsão de quando isso acontecerá.
O referido recurso trata de processo em que a autora, mulher transexual, buscava ser indenizada por dano moral em razão de ter sido proibida de utilizar o banheiro feminino de um shopping.
O Juízo de 1º grau condenou a empresa ao pagamento de indenização por dano moral à autora, porém, a sentença foi modificada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina. A decisão de 2º grau foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, após o quê a discussão chegou ao STF, que admitiu o processo como Recurso Extraordinário com Repercussão Geral.
O que é Repercussão Geral?
A Emenda Constitucional nº 45 de 2004, conhecida como a PEC da reforma do Poder Judiciário, passou a exigir a demonstração de "repercussão geral" para a admissão de Recurso Extraordinário, conforme se depreende da leitura do §3º do art. 102, da Constituição.
No ponto, o art. 1.035, §1º, do Código de Processo Civil, determina que para fins de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo. Em outras palavras, o debate que existe no processo deve atingir outras pessoas/grupos, e não só as duas partes do processo (autor e réu). Isso evita que processos com o mesmo tema se multipliquem.
No caso, a repercussão geral está demonstrada, porque, apesar de uma única pessoa ter sido "vítima" e pedir indenização, outras pessoas (trans) são atingidas pela proibição de uso dos banheiros consoante sua identidade de gênero, e podem ser beneficiadas (ou prejudicadas) pela decisão que o STF dará.
"Perdido" de vista
Apesar de o Supremo Tribunal Federal já ter decido que o caso tem repercussão geral, e de contar com parecer favorável da Procuradoria-Geral da República, o processo está parado desde novembro 2015 em razão de pedido de vista do Ministro Luiz Fux.
Explico! No primeiro grau o processo é decidido por um único juiz, que a gente chama de juiz singular. Já nos tribunais (TJ, TRF, TRT, STJ, ..., STF), a decisão é tomada por um órgão colegiado (câmara, turma ou seção), formado por alguns juízes. Nos julgamentos em tribunais, um juiz é responsável por receber o processo, ouvir as partes e outros interessados, fazer um relatório, e apresentar o caso para ser julgado. Nesse julgamento - sessão - os juízes, inclusive o relator, apresentará sua decisão. Pode ser, então, que durante a sessão de julgamento, um desses juízes peça ao juiz relator mais tempo para apreciar o caso - é isso que chamamos de pedido de vista.
Retomando. O pedido de vista, hoje, tem um prazo de até 30 (trinta) dias para ser concluído (art. 134 do Regimento Interno do STF), e o caso devolvido para julgamento, porém, diversos casos estão parados no STF (e outros Tribunais) há muito tempo, em razão de pedidos de vista - ou, "perdidos" de vista, como já disse o ex-ministro Marco Aurélio. Desse modo, a prestação jurisdicional se torna lenta e ineficaz.
No caso apresentado, em que se discute o uso de banheiros por pessoas trans de acordo com sua identidade de gênero, o processo está parado há 08 (oito) anos. Enquanto isso, pessoas trans continuam sendo alvo de discriminação ao tentar usar banheiros. Lembro que a violência, nesse caso, é simbólica, porquanto, mesmo que não seja dito "você é homem", a vítima é proibida de atender as suas necessidades fisiológicas; é retirada dela sua legítima expectativa de ser respeitada de acordo com a forma como se identifica.
Para além disso, considero essa uma discussão já ultrapassada, já que o próprio Supremo Tribunal Federal, reiteradas vezes, proferiu decisões paradigmáticas no que toca a identidade de gênero e a orientação sexual dos cidadãos brasileiros.
Exemplifico!
Em 2018, o STF decidiu, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275, que "o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero"; que a identidade de gênero se revela como manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. Ao final, entendeu que a pessoa transgênero que comprovar sua sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita dispõe do direito fundamental à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade.
Já em 2019, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, o STF decidiu que o estado brasileiro está em mora (atraso) inconstitucional em criminalizar devidamente a homofobia e a transfobia. Entendeu, ademais, que a discriminação fundada em orientação sexual e identidade de gênero, se enquadra no conceito de racismo, previsto na Lei 7.716/89, em sua dimensão social, porque o racismo não é um conceito estritamente biológico e/ou fenotípico, determinando, portanto, a aplicação da Lei de Racismo contra casos de homotransfobia.
Nesse limiar, entendo, respeitadas as opiniões contrárias, ser irrazoável, irracional e desproporcional e inconstitucional proibir pessoas de usarem banheiros conforme sua identidade de gênero, simplesmente porque não há uma lei permitindo, ou porque o Supremo ainda não decidiu o caso aqui apresentado de forma definitiva.
Além disso, é necessário que o caso (RE 845.779) seja devolvido ao Relator, a fim de que possa ser julgado e decidido em definitivo, para que a recorrente receba, finalmente, sua indenização, mas que possa dirimir a "controvérsia" constitucional lá discutida, sob pena de se configurar mora inconstitucional, ainda mais problemática, porque ao Poder Judiciário não é dado se eximir de decidir determinadas matérias, sob o pretenso argumento de a lei ser omissa.
Além da urgência que é ínsita à demanda, devolver o processo ao colegiado, a fim de que se encerre o julgamento, é um dever que atende ao direito a razoável duração do processo, posto que a Constituição garante "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação"(art. 5º, LXXVIII, CRFB/88), incluído nesse prazo razoável a atividade satisfativa.
Sugiro, pois oportuno, que os leitores enviem e-mail para os gabinetes dos Ministros do Supremo Tribunal Federal - que podem ser encontrados no site do Tribunal - exigindo, de forma respeitosa, é claro, a devolução do caso, e a retomada do seu julgamento.
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